Os primeiros raios rasgam a manhã,
sinto a luz à sorrelfa pelas frestas da barraca. O cheiro é uma mistura de
frescor do orvalho e de outros que já se encontram no limiar da realidade.
Estou calma, quando deveria sentir me apavorada. Antes que tenha que enfrentar
o meu ato, repasso minha história lentamente, deitada sozinha, no colchão
inflável. Tenho sessenta e cinco anos e considero que tive uma boa mostra desta
vida, do amor ao ódio, da paz ao desespero, da esperança ao caos. Na maior parte
do tempo conheci apenas a pacata vida de uma mãe extremada, excelente dona de
casa e boa esposa.
Se penso em tudo isso é porque
quando o sol expuser o que fiz durante a noite, ninguém mais se lembrará de
quem sou. E aqueles que se lembrarem, serão para menear a cabeça, quase inacreditando
que enlouqueci.
Tenho cinco filhos, mas apenas
quatro estão comigo. O pai caminhou ao encontro do último, nesta longa
madrugada. Dos vivos há pouco a falar: dediquei-lhes toda a energia que me foi
possível, até que estivessem fortes o suficiente para voarem.
Morando em região rural, lutando
com dificuldades, engravidei sucessivamente por quatro vezes. Tive meninos saudáveis
e que afora as despesas, nos davam muita alegria. Eu ainda era jovem e forte, criada
para servir ao bom marido que conquistara, quase sem palavras. Com os meninos
crescendo, meu corpo parecia ter perdido o interesse em reproduzir a espécie e
estávamos confortáveis com a ideia.
Dez anos depois, em meio a uma
crise financeira forte, uma nova vida crescia insuspeitadamente dentro de
mim. E crescia com a determinação das
fêmeas, era a menina que eu sempre sonhara. Meu esposo angustiava-se, mal
podíamos nos alimentar e agora, mais esse transtorno.
Numa noite, em que nada vendera
na cidade, disse que iríamos acampar na beira do rio, para pescarmos. Coloquei
a janta para as crianças, acendi as lamparinas e arrumei os mosquiteiros nas
camas. Partimos em seguida.
Na beira do rio, ele me mostrou
os comprimidos. Disse onde eu deveria introduzir e que os outros dois eu deveria
beber. Não haveria contestação, ele era meu marido . Sofri durante toda a
madrugada. Se ele tivesse rasgado minha barriga com o facão, talvez doesse
menos.
Meu corpo por fim a cuspiu.
Morta, mas perfeitinha. Cabia na palma da mão e ainda sobrava espaço. Enrolei-
a com um pano, mas estava fraca demais para enterrá-la. Rezei por meu pecado e
entreguei o pequeno pacote a ele, para que lançasse no rio.
Chorei cada gota daquele rio por
algumas semanas e até cheguei muito perto de atirar-me a água em busca de paz.
A existência dos meus filhos me impediu e quando meus olhos secaram, prossegui,
como um último fio que suporta o peso de todo o tecido. Durante o dia, cuidava
dos meus afazeres. À noite, por vezes, ainda emprestava-lhe meu corpo para que
aplacasse sua fome. E lembrava, quando ele já ressonava, esquecido de tudo.
Durante 15 anos, eu soubera o que
faria. E agora que eu havia feito, me sentia inteira de novo. Por que esperei
tanto, é a pergunta que muitos farão. Porque creio na hora certa para cada
coisa. Porque havia quatro filhos que necessitavam de pai e mãe e porque o
fruto só amadurecesse depois de um longo processo de semente, árvore e flor.
Ontem, convidei-o para pescar.
Estava uma noite escura, bastante propícia. Ajudei-o a montar a barraca.
Pescamos um pouco e ofereci-lhe um chá, antes de dormir. Tomei o cuidado de
colocar meio vidro de gotas de calmante. Ele é muito fraco para essas coisas e
logo estava dormindo profundamente. Dei-lhe um tiro na testa, como vira tantas
vezes na TV e me pus a trabalhar na parte mais difícil: levar o corpo até o
rio.
Foram necessárias cerca de duas
horas para cobrir a curta distância, arrastando aquele peso. Não pude arremessá-lo
como ele fez com a menina, mas rolei para dentro d’água e ouvi somente um baque
sujo.
Voltei para a barraca. Lavei
minhas mãos e dormi tranquila. Eles agora terão uma chance para se conhecerem. Espero o dia amanhecer, para duas coisas:
contar a meu filhos e chamar a polícia.
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