sexta-feira, 25 de julho de 2014

Lucidez

Os primeiros raios rasgam a manhã, sinto a luz à sorrelfa pelas frestas da barraca. O cheiro é uma mistura de frescor do orvalho e de outros que já se encontram no limiar da realidade. Estou calma, quando deveria sentir me apavorada. Antes que tenha que enfrentar o meu ato, repasso minha história lentamente, deitada sozinha, no colchão inflável. Tenho sessenta e cinco anos e considero que tive uma boa mostra desta vida, do amor ao ódio, da paz ao desespero, da esperança ao caos. Na maior parte do tempo conheci apenas a pacata vida de uma mãe extremada, excelente dona de casa e boa esposa.
Se penso em tudo isso é porque quando o sol expuser o que fiz durante a noite, ninguém mais se lembrará de quem sou. E aqueles que se lembrarem, serão para menear a cabeça, quase inacreditando que enlouqueci.
Tenho cinco filhos, mas apenas quatro estão comigo. O pai caminhou ao encontro do último, nesta longa madrugada. Dos vivos há pouco a falar: dediquei-lhes toda a energia que me foi possível, até que estivessem fortes o suficiente para voarem.
Morando em região rural, lutando com dificuldades, engravidei sucessivamente por quatro vezes. Tive meninos saudáveis e que afora as despesas, nos davam muita alegria. Eu ainda era jovem e forte, criada para servir ao bom marido que conquistara, quase sem palavras. Com os meninos crescendo, meu corpo parecia ter perdido o interesse em reproduzir a espécie e estávamos confortáveis com a ideia.
Dez anos depois, em meio a uma crise financeira forte, uma nova vida crescia insuspeitadamente dentro de mim.  E crescia com a determinação das fêmeas, era a menina que eu sempre sonhara. Meu esposo angustiava-se, mal podíamos nos alimentar e agora, mais esse transtorno.
Numa noite, em que nada vendera na cidade, disse que iríamos acampar na beira do rio, para pescarmos. Coloquei a janta para as crianças, acendi as lamparinas e arrumei os mosquiteiros nas camas. Partimos em seguida.
Na beira do rio, ele me mostrou os comprimidos. Disse onde eu deveria introduzir e que os outros dois eu deveria beber. Não haveria contestação, ele era meu marido . Sofri durante toda a madrugada. Se ele tivesse rasgado minha barriga com o facão, talvez doesse menos.
Meu corpo por fim a cuspiu. Morta, mas perfeitinha. Cabia na palma da mão e ainda sobrava espaço. Enrolei- a com um pano, mas estava fraca demais para enterrá-la. Rezei por meu pecado e entreguei o pequeno pacote a ele, para que lançasse no rio.
Chorei cada gota daquele rio por algumas semanas e até cheguei muito perto de atirar-me a água em busca de paz. A existência dos meus filhos me impediu e quando meus olhos secaram, prossegui, como um último fio que suporta o peso de todo o tecido. Durante o dia, cuidava dos meus afazeres. À noite, por vezes, ainda emprestava-lhe meu corpo para que aplacasse sua fome. E lembrava, quando ele já ressonava, esquecido de tudo.
Durante 15 anos, eu soubera o que faria. E agora que eu havia feito, me sentia inteira de novo. Por que esperei tanto, é a pergunta que muitos farão. Porque creio na hora certa para cada coisa. Porque havia quatro filhos que necessitavam de pai e mãe e porque o fruto só amadurecesse depois de um longo processo de semente, árvore e flor.
Ontem, convidei-o para pescar. Estava uma noite escura, bastante propícia. Ajudei-o a montar a barraca. Pescamos um pouco e ofereci-lhe um chá, antes de dormir. Tomei o cuidado de colocar meio vidro de gotas de calmante. Ele é muito fraco para essas coisas e logo estava  dormindo profundamente.  Dei-lhe um tiro na testa, como vira tantas vezes na TV e me pus a trabalhar na parte mais difícil: levar o corpo até o rio.
Foram necessárias cerca de duas horas para cobrir a curta distância, arrastando aquele peso. Não pude arremessá-lo como ele fez com a menina, mas rolei para dentro d’água e ouvi somente um baque sujo.

Voltei para a barraca. Lavei minhas mãos e dormi tranquila. Eles agora terão uma chance para se conhecerem.  Espero o dia amanhecer, para duas coisas: contar a meu filhos e chamar a polícia.