Perto do meio dia o céu estava escuro, denso, baixo. O ar abafado sufocava e condizia com a tristeza embolada em minha garganta. Queria me esconder, queria fugir do medo tão denso e baixo quanto as nuvens carregadas que poderiam se quebrar e desabar num temporal a qualquer segundo. Caminhei para casa com passos miúdos e rápidos, toda a papelada apertada contra o peito num envelope marron, amarrotado, cheio dos piores fantasmas. Outro pequeno envelope continha promessas de felicidade e ternura, mas era tão leve que mal se percebia. Temia encontrar algum conhecido, mas felizmente a iminencia da tempestade de verão mantinha as pessoas na segurança de seus lares.
Não olho para os cachorros que saltitam a minha presença. Eles farejam a indiferença e voltam a suas cachorrices anteriores. Destranco a porta e uma corrente de vento entra comigo, ao mesmo tempo em que o céu desaba num fervor de vento, água e raios. Enquanto escancaro as janelas, observo a correria pela vizinhança, todos se trancam para evitar o aguaceiro. Devo parecer louca. D. Cotinha grita algo que não consigo entender, por causa do barulho e da exuberância das forças da natureza. Recebo uma rajada de água fria no rosto e acolho isto como se buscasse a força que está além de mim para enfrentar o medo que esmaga meus pulmões.
Sem me importar por estar parcialmente encharcada, acendo o pequeno fogareiro e penso em queimar todo o conteúdo do grande e ameaçador envelope marron. Observo as chamas azuladas e vagarosamente estendo a mão para alcançar a vasilha com água e preparar um chá solitário. Deposito a xícara azul clarinho com florzinhas amarelas sobre a bancada delicadamente, sentindo a segurança que esse simples gesto me traz por saber que aquela louça esta na família a muito tempo, parte de um jogo de chá que pertecera a minha avó. Sei que não é racional esse sentimento, mas é como se a eternidade estivesse contida naquela xícara tão frágil e capaz de durar tanto. E não uma simples eternidade, mas uma eternidade boa, doce, aromática como chá de morango.
Chá de morango. Você pode enfrentar quase tudo após uma boa chávena de chá de morango, encorpado e perfumoso. Escolho cuidadosamente o sache, aproximo-o do nariz para sentir -lhe a validade. A marca é boa, mas o cheiro que exala do sache tem que estar íntegro para garantir que a qualidade e o sabor estarão inalterados e pensar nestas coisas do cotidiano me parece extremamente agradável agora.
Ouço o previsível e reconfortante chiar da água, murmurando que está no ponto. Antecipo o prazer da degustação, enquanto derramo o líquido na xícara e o sache solta aroma e sabor espalhando um veio colorido que aos poucos funde-se a água, deixando de existir ambos para dar origem ao chá fumegante.
Carrego a xícara entre as mãos em concha, para aquecê-las. Puxo a manta da poltrona e enrolo sobre meus ombros. Diante de meus olhos, emoldurada pela janela, a tempestade lança as árvores de um lado para outro tentando arrancá-las, mas elas resistem. O espetáculo me fascina, me faz prender a respiração, sinto um nó na garganta. Não sei por quanto tempo apenas observo, mas os ventos diminuem e dou me conta de que apenas a chuva chora sobre a terra. Tenho finalmente lágrimas em meus olhos. Choro junto com a natureza, ou ela chora comigo, não tenho como sabê-lo, mas também eu sou parte deste ciclo de vida e morte que todos os dias tão banalmente se repete no planeta.
Os envelopes estão ainda sobre o aparador e tomo chá de morango em goles súbitos que descem quentes em minha garganta, enquanto as lágrimas rolam mornas sobre minha face. Tantos extremos e possibilidades ambos escondem: no pequeno há um presente dele, uma promessa de recomeço, no outro a possibilidade da dor e do fim, ovo de víbora. O chá parece perder o sabor e alcanço o envelope com uma das mãos. Está meu nome, digitado em fonte times new roman, justo esse modelo de letra, que nunca me agradou. Acho que pensar nesses detalhes insignificantes agora é um modo de não pensar no conteúdo. Parece leve demais, para uma importancia tão grande. Fico furiosa comigo mesma: como posso me deter em leviandades? Esperava que fosse um compêndio ou um tratado? Atiro longe o maldito envelope, entro no chuveiro e ainda vestida sinto a água morna escorrer pelo meu corpo, enquanto soluço, em mais uma tão familiar crise de autopiedade que se abate sobre mim nos últimos meses.
Não sei quanto tempo passei chorando,
nem em qual momento a decisão foi tomada e o chuveiro desligado. Enxuguei e
observei meu corpo, com uma calma estranha, olhando aqueles braços finos como
se não fossem meus. Todas aquelas marcas. Uma história capaz de estourar a
caneta e fazer sobrar na pele os traços arroxeados, esverdeados, amarelados,
quase um arco-íris.
Organizo primeiro a frasqueira. Tantas
pílulas que sobra pouco espaço para os produtos de beleza, que de qualquer
forma, quase nunca me lembro de usar. Depois a mala. Decido que a quero leve. Nada
que me faça perder tempo, apenas o necessário para manter-me aquecida e a salvo
de olhares especulativos. Somente um livro, que depois de lido, substituirei
por outro em um sebo qualquer.
Para a doutora, um bilhete e a
devolução do envelope grande. Chega de tratamentos, não me importa se reduziu,
se diminuiu, não quero saber. Seis meses lutando, variando a paisagem entre uma janela
de hospital e outra, observando as cores dos remédios, vomitando minha alma e fazendo planos para
quando ficar curada. Nada de novo aconteceu e dentro de mim ainda mora meu
inimigo número um. Então, cara doutora, por enquanto, a dor ainda é controlável
e consigo viver. Retornarei para os
cuidados finais. Antes disso, viajarei pelo mundo. Cantarei em volta de uma
fogueira, dançarei, irei num karaokê, tomarei banho de chuva, farei amor.
Por alguns segundos, penso na reação
de minha médica e amiga. Mas sei que a ruga na testa, se transformará em um
sorriso, porque ela conhece minha determinação e acredita em minha cura tanto
quanto acredita num macaco falante que lê o futuro. Coloco o grande envelope
lacrado, dentro de outro, endereçado ao consultório. Deposito na caixa de correio.
Abro gentilmente o pequeno envelope,
como se o conteúdo pudesse escapar. E de fato, ele voa como uma andorinha pela
sala. Meu cruzeiro. O nosso cruzeiro. Chamo um táxi. Fecho tudo. Aviso D.
Cotinha que não precisa me vigiar mais. Parto para a vida. A morte vai ao meu lado, mas quem se importa?
Vou morrer, vivendo.